RESENHA ENXUTA - A ESPETACULAR VIDA DE STAN LEE, de Danny Fingeroth


 

Biografias são leituras perigosas.

Sempre tento ter em conta, além do  zeitgeist, a relação entre o autor e o biografado ou a obra deste. E também levar esta análise de forma personalizada, focando na pessoa do escritor, que, dependendo da sua simpatia (ou falta dela) pelo objeto da sua escrita, pode sempre optar por “esquecer” de abordar algumas versões dadas a certos fatos ou atribuir méritos ou deméritos imerecidos.

Dito isto, creio que são poucas as biografias perfeitas, que entregam fartura de informação, escritas de forma agradável e com a necessária dose de isenção, qualidade cada vez mais renegada nos dias de hoje.


Stan Lee no exército, durante a Segunda Guerra Mundial. 

Danny Fingeroth ama o trabalho de Stan Lee. Admirava Stan Lee. E trabalhou com Stan Lee. Algumas das histórias que ele conta possuem aquele saboroso tempero do “eu estava lá”. Por outro lado, há momentos em que somos colocados em dúvida sobre o seu desprendimento, principalmente quando aborda pontos controversos como as disputas entre Stan e Jack Kirby ou Steve Ditko sobre a extensão da participação do roteirista na criação dos maiores e mais duradouros ícones do que se tornaria o Universo Marvel.


Para ser enviado pelo correio para leitores e distribuidores a taxas mais baixas, todo periódico precisava ter duas páginas de texto corrido, e era por isso que cada revistinha tinha duas páginas de algum material em prosa. (...) Assim, Simon encarregou Stanley de escrever o texto da edição nº 3 de Capitão América. O adolescente escreveu uma história chamada "Capitain America Foils the Traitor's Revenge". Só que quem assinava a história não era Stanley Martin Lieber, we sim um tal de "Stan Lee". Lee sempre alegou estar guardando seu nome verdadeiro para o grande romance que estava destinado a escrever.


Bom sinal: Fingeroth dá a sua opinião - favorável a Stan, claro - mas não deixa de apresentar os argumentos contrários, não deixando de apontar que, na guerra de narrativas sobre os primórdios da Marvel, todos - inclusive Stan - criaram diversas versões para os mesmos fatos.

Sendo assim, podemos seguir em frente.

Um livro biográfico só vale a pena se saciar a sede do leitor, ou seja, atender aquilo que ele espera ao comprar uma versão da vida de uma pessoa que fez parte não apenas de um determinado momento histórico como estava inserida num determinado movimento, seja artístico, científico, etc. Se o leitor, no caso, estiver mais interessado numa abordagem sobre o mercado de quadrinhos em geral ou, especialmente, sobre a história da Marvel, melhor procurar outras obras, como Marvel Comics - A História Secreta, de Sean Howe, ou Pancadaria - Por Dentro do Épico Conflito Marvel vs DC, de Reed Tucker. Só pra constar, indico ambas.


Jack Kirby, o Rei. "Tive que lutar pelos super-heróis. Tive que recriar toda a série (da Timely). Senti que na editora não havia mais ninguém qualificado para isso. Stan Lee foi apenas uma ferramenta para que eu alcançasse os meus objetivos. Ele era meu contato com Martin."


Em A Espetacular Vida de Stan Lee há muitas referências à história dos quadrinhos, mas nada aprofundado: o foco aqui é Lee e por isso temos que passar pelos inevitáveis (e sempre chatos) capítulos introdutórios, abordando a infância e juventude do biografado. Felizmente, Fingeroth se desvencilha desta parte obrigatória em poucas páginas e poupa o leitor de bobagens. Sim, eu aplaudo até mesmo o quanto ele pouco se detém sobre as relações familiares de Stan Lee, exceto aquelas que interessam aos fãs de quadrinhos: Martin Goodman (casado com Jean Goodman, prima de Stan, presidente do que viria a ser a Marvel Comics) e Larry Lieber (irmão de Stan, que trabalharia ao seu lado na Casa das Ideías, inclusive na tira de jornal do Homem-Aranha, que durou de 1976 - com Lee e John Romita Sr. - até 2019).


Depois de trinta anos de associação profissional e dez anos de sucesso na Marvel, Goodman ainda assim não conseguia dar muito mais crédito ao primo de sua esposa do que dizer que Lee tinha "talento para escrever" e que "fez um bom trabalho". 


A leitura me trouxe um ponto que eu sempre vislumbrei pelo que vi da obra de Stan Lee (e eu li MUITA coisa dele, meus caros): sem negar sua imaginação ou seu talento, estamos diante principalmente de uma história de dinamismo e trabalho duro. Sim, Stan foi também provocador e seu ego, que nunca foi mirrado, cresceu extraordinariamente ao longo das décadas, mas não há como negar que ele fez por onde ter seu nome em letras garrafais em qualquer obra que tente falar sobre quadrinhos.

Stan estava lá, na Marvel (ainda Timely) quando tudo parecia perdido depois dos anos da Segunda Guerra Mundial. Também estava lá quando, mais uma vez, agora nos anos 1950, as hqs estavam sofrendo por conta da perseguição liderada pelo infame Fredric Wertham (e Lee defendeu ativamente os quadrinhos). Estava lá quando, junto com artistas do naipe de Jack Kirby e Steve Ditko, começou o Universo Marvel, não apenas escrevendo mas editando todos os títulos seminais deste. Estava lá, nas crises dos anos 1970 e 1980, como editor-chefe, quando tudo sempre parecia perdido e sempre retornava ao rumo de sucesso, superando expectativas. Estava lá, agora quase como um embaixador da Casa das Idéias, empenhado em levar seus personagens para outras mídias, quando a Marvel faliu nos anos 1990, precisando passar por uma reestruturação editorial e administrativa total, emergindo do caos para não apenas manter a posição de destaque no mercado que conquistou décadas atrás, como fincar com firmeza os pés no mundo cinematográfico, se tornando um estúdio de sucesso, responsável por alguns dos maiores sucessos de bilheterias de todos os tempos. Sim, Stan Lee também esteve em boa parte das duas primeiras décadas deste século, agora já na posição de lenda.

Stan Lee fez participações em muitos filmes e séries - e não só da Marvel. Aqui ele fez uma hilária ponta em The Big Bang Theory, série de sucesso da CBS, vivendo seu melhor personagem: Stan Lee.


Gostando ou não da pessoa de Stan Lee, a verdade é a verdade. Não há como negar ou diminuir tais fatos. Mas Danny Fingeroth não deixa de apontar alguns problemas, principalmente a escalada ególatra do biografado ao longo dos anos, que o levou a fazer apostas erradas, cometer erros comerciais terríveis e investir em caminhos equivocados, terminando sempre por se salvar no último momento, principalmente por ser Stan Lee, ora.


É verdade que as vitórias do Homem-Aranha eram entremeadas de drama e tragédia, mas eram histórias de verdade, algumas até agradáveis. E, embora sua história de origem o faça parecer um pária sem amigos, a primeira edição de sua revista homônima (...) mostra Peter como o sujeito excêntrico da turma, mas definitivamente como parte do grupo - o que é bem diferente de não ter amigos.


Um ponto interessante - que ocupa boa parte das paginas, pois são coisas que se arrastaram ao longo de décadas - são as polêmicas, principalmente as que envolveram a criação do que viria a ser o Universo Marvel (colocando Stan Lee e Jack Kirby em confronto) e do principal personagem da editora, o Homem-Aranha (e aqui as tretas seriam com Steve Ditko). A abordagem aqui, mostrando argumentos bons e ruins de todos os lados, mostra que a a visão de alguns fãs (que, por isso mesmo, não gostam do livro de David) é parcial, e até idiota: detestar Stan Lee porque adora Kirby ou Ditko é tão sem sentido como não gostar de Paul McCartiney porque prefere John Lennon.


O desprezo que Ditko sentia por Lee é bem evidente, e ele dava pouca ou nenhuma importância às suas contribuições como roteirista, editor, diretor de arte e, sim, corroteirista de muitas das histórias do Homem-Aranha que fizeram juntos - até que Lee concordasse em dar a ele o crédito total dos roteiros.


É claro que, apaixonado por quadrinhos como eu sou, o livro foi se tornando cada vez mais desinteressante à medida que Stan Lee foi se afastando mais e mais dos mesmos, focado em levar os personagens da Marvel - e outros que criou posteriormente, além de, mais pra frente, a si próprio - para outras mídias. Não é demérito, mas realmente não leio biografias para saber detalhes da vida caseira de ninguém: quando li Jerry Lee Lewis - Sua Própria História, de Rick Brag, estava interessado nos bastidores de shows e gravações, em música, não em quantas vezes ele foi preso ou com quantas mulheres ele se relacionou. Imagina então o quanto a vida pessoal de um sujeito família e careta como Stan pode ser... bocejante.

Stan Lee no set de um dos telefilmes do Hulk dos anos 70 - 80. Eu acho que a série de concessões - inclusive visuais, como dá pra enxergar - feitas para que os personagens ganhassem versões live action foi a maior responsável pelo atraso do sucesso dos super-heróis da Marvel no cinema. 

O livro vem com capa cartonada, mas de certa durabilidade, com um papel levemente amarelado, o que ajuda a ler em locais de intensa claridade (papel branco demais costuma refletir a luz). Há alguns escorregões na revisão - nada muito gritante - e a tradutora Flora Pinheiro ou os editores poderiam ter buscado algumas informações sobre de que forma e com que títulos alguns personagens foram publicados no Brasil (mais uma vez, nada que atrapalhe o entendimento). Há quatro páginas de fotos, cobrindo rapidamente os anos de vida de Stan. 

A Espetacular Vida de Stan Lee - A biografia definitiva do criador de Homem-Aranha, Homem de Ferro, X-Men, entre outros heróis icônicos da Marvel. De Danny Fingeroth. Tadução de Flora Pinheiro. Editora Agir. 488 paáginas. R$ 79,90 (sem descontos).


Mesmo assim, uma obra que valeu a leitura e merece constar na coleção de qualquer um apaixonado pela história da Nona Arte. E não é difícil encontrar edições novas com bons descontos, acima de 40%. 

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